Volto ao tema da violência doméstica com uma conversa com Julie Broussard, gente de programas da ONU Mulheres China. Falamos sobre a proposta de lei apresentada pelo governo chinês no final do mês passado.
Broussard diz que diversas instituições se engajaram por mais de uma década em favor de uma proposta como essa. Avalia que o texto tem pontos positivos, e algumas questões que ainda devem ser corrigidas. E, por fim, que não basta ter uma lei: é preciso engajamento político para garantir investimento e treinamento.
Quais são hoje os principais problemas, na China, relacionados à violência doméstica?
Geralmente, o sistema –a polícia, o setor de saúde, de Justiça, o departamento que cuida de assuntos civis– não responde adequadamente quando a vítima registra uma denúncia de violência doméstica. Com frequência, as vítimas ouvem “ah, isso é um problema de família e nós não nos envolvemos em disputas de família”. As denúncias, muitas vezes, não são levadas em consideração de forma suficientemente sérias.
Mesmo em cidades como Pequim e Xangai?
Em todos os lugares. Acontece em toda a China, nas cidades e no interior. Não há resposta adequada de forma suficiente. Temos alguns projetos-piloto em algumas províncias da China em que oferecemos treinamento à polícia, ao setor de saúde, etc. Vemos bastante melhoria quando a polícia e os profissionais de saúde são adequadamente treinados, quando todo o sistema compreende que a violência doméstica é um crime em si e trabalha junto para abordar a situação de forma mais adequada. Mas há um longo caminho a ser percorrido. Os nossos pilotos, os de outras agências da ONU e instituições na China são só um pingo. Sentimos que a lei é necessária, porque, apesar de a violência doméstica já ser um crime na China, ela não é bem definida. É apenas mencionada no contexto da lei do casamento, que não define o que é [a violência doméstica] e, mais importante, não define a implementação da resposta do governo. A proposta [apresentada em novembro] é uma tentativa de fazer isso, de dizer o que é a violência doméstica, como ela deve ser tratada e quais são as responsabilidades de cada setor. A proposta também precisa abordar a prevenção, para que a violência não aconteça. Culturalmente, na China, há um grande estigma em ser vítima de violência doméstica, muitas pessoas são extremamente relutantes em aparecer e admitir que são vítimas. E é muito frustrante receber uma resposta inadequada do setor que deveria ajudá-las quando, finalmente, resolvem dizer que são vítimas.
A Sra. diria que, com relação à violência doméstica, há alguma particularidade na China em comparação com outros países?
As estatísticas que temos mostram que a China está mais ou menos no mesmo patamar que outros países em termos de prevalência de violência doméstica. Em 2010, uma pesquisa ampla identificou 24,7% de prevalência. Ou seja, um quarto já experimentou pelo menos um incidente de violência doméstica. Algumas agências da ONU fizeram estudos de pequeno alcance em algumas localidades e encontramos prevalência entre 30% e 40%. Quando eu compartilho essa informação com o público chinês, a maior parte não acredita em uma taxa tão alta, nós acreditamos que é. Acho que é uma percepção, porque há tanto silêncio no país sobre o tema, as pessoas acham que é um problema do campo e que na cidade não há. Mas acontece nas cidades e em diferentes classes sociais. E é como em outros países do mundo, França e Estados Unidos também têm taxas de prevalência ao redor de 25%.
Essa proposta chinesa não foca apenas nas mulheres vítimas de violência, certo?
É direcionada à violência que ocorre entre membros da família, em que mulheres, crianças, idosos e deficientes são o grupo predominante. Vai além da maior parte das leis de violência doméstica de outros países, que focam principalmente na violência sofrida pelas mulheres.
Quais são os pontos mais importantes da lei na sua avaliação?
Um dos artigos diz que a pessoa que pede proteção pode mandar que o agressor deixe a sua casa. Não esperávamos por isso, é um avanço muito bom. Especialistas que participaram de uma mesa redonda [internacional na China] em abril questionaram a opção de colocar a mulher e as crianças num abrigo, defendendo que pudessem ficar em casa. É um dos melhores aspectos da lei. Um ponto problemático nessa área, no entanto, é que a vítima deve entrar na Justiça e a medida protetiva deve estar no contexto de uma ação, por exemplo um pedido de divórcio, pensão, herança, guarda, adoção. Para nós, é relativamente problemático, porque a experiência internacional mostra que não necessariamente a vítima quer ir até esse ponto, de pedir um divórcio para ganhar uma medida protetiva. Se ela não entra com a ação em 30 dias de quando recebe a medida protetiva, então a Justiça revoga a medida protetiva. Acreditamos que a vítima deve ter acesso à medida independentemente de uma ação.
Algum ponto relevante ficou de fora dessa proposta apresentada pelo governo?
Ainda estamos formulando nossas recomendações sobre o que é inadequado ou está faltando. A proposta restringe o alcance das medidas para membros da família, então inclui violência contra cônjuges, crianças e outros parentes próximos que vivem juntos. Não é suficientemente ampla, porque sabemos que a violência acontece fora da família em relações íntimas, pode acontecer em namoros entre adolescentes e jovens adultos, e entre ex-cônjuges. E também pode ocorrer entre parceiros do mesmo sexo. Vamos defender uma definição mais ampla.
Quanto tempo levou para essa proposta aparecer? Imagino que tenha havido alguma pressão social.
Diferentes instituições, internacionais e nacionais, se engajaram no tema por 12 anos. Estamos muito felizes que o governo chinês chegou a esse ponto.
Desde 2006 temos no Brasil uma lei semelhante a essa, muito famosa. Mas ainda temos problemas para aplica-la corretamente. A Sra. acredita que a China também pode ter problemas após a lei entrar em vigor?
É uma barreira em todo país, não é suficiente fazer uma lei. Para aplica-la bem todos os setores relacionados precisam ser bem treinados: a polícia, a Justiça, os profissionais de saúde. E tudo isso requer financiamento para ser feito corretamente. Em todo país há uma curva de aprendizado. A lei é aprovada, ela geralmente é muito bem formulada, entra em implementação e geralmente é um desafio, a não ser que haja engajamento político com treinamento e financiamento.