A notícia recente sobre o cumprimento da pena de morte para um brasileiro preso na Indonésia me fez lembrar de um assunto que apareceu na imprensa chinesa nas últimas semanas: o fim da doação de órgãos por prisioneiros executados na China.
O sistema chinês de transplantes é muito recente. Apenas em 2011, o país adotou uma rede nacional de informações sobre captação e distribuição de órgãos; até então, ficava a critério dos hospitais fazer essa ponte, o que não garantia a entrega do órgão a quem mais precisasse e abria brecha para a venda de órgãos e outras irregularidades.
Além de novo, o sistema ainda é fortemente sustentado pela polêmica doação de órgãos por prisioneiros executados –pela norma, desde que haja consentimento do preso ou da família. De acordo com a Xinhua, agência estatal de notícias, metade dos transplantes de rim realizados em 2009 no país (cerca de 6,7 mil) ocorreu com órgãos que vieram de presos executados.
Na conta geral, segundo um artigo publicado em The Lancet em 2011, quase 60% dos órgãos transplantados na China eram doados por pessoas executadas, o que fazia da China o único país a “usar sistematicamente órgãos de presos executados em transplantes”.
A prática encontrou forte resistência de médicos e grupos de defesa dos direitos humanos ao redor do mundo. O argumento contrário mais forte é o de que o sistema seria antiético, pois os presos poderiam ser coagidos a doar seus órgãos, e as execuções poderiam ser influenciadas pela necessidade das doações.
Em 2006, a Associação Médica Mundial emitiu uma nota criticando a prática na China. Mais ou menos nessa época, integrantes do governo chinês começaram a se pronunciar a favor de uma mudança no sistema, que deveria deixar de se basear na doação de presos executados e migrar para a doação voluntária da população, seguindo critérios objetivos de distribuição, tudo num futuro próximo.
Campanhas de conscientização das famílias de potenciais doadores e a implementação de um sistema nacional já teriam reduzido a participação de órgãos doados por pessoas executadas para cerca de 30% do total, segundo a Xinhua informou em agosto passado.
E um passo significativo estaria sendo dado agora, segundo matéria do China Daily de dezembro: a captação de órgãos passaria a ser baseada apenas em doações voluntárias a partir deste mês, o que deixaria no passado a dependência dos presos executados.
Atravessando o globo, esse sensível assunto também deu o que falar nos Estados Unidos. Em 2011, o New York Times publicou um artigo escrito por um preso condenado à morte pelo assassinato de quatro pessoas. No texto, o preso diz que queria doar seus órgãos após a sentença ser cumprida, faz uma defesa da causa e denuncia que estava sendo impedido pelas autoridades de realizar a doação desejada.
Nesse caso americano, me parece, fica um tanto prejudicado o argumento de que a doação seria antiética e contra a vontade do preso. Ainda assim, o caso gerou forte repercussão nos Estados Unidos.
Por aqui, com ou sem a doação dos presos executados, o governo chinês ainda tem um nó a desatar no sistema: as longas filas para transplantes. Cerca de 10 mil procedimentos são feitos por ano no país, enquanto a fila chega a 300 mil pessoas, diz a Xinhua. A saída parece ser a mesma perseguida por outros países, como o Brasil, com a garantia de confiabilidade do sistema nacional e a sensibilização de potenciais doadores.