Nesse final de semana, a Folha publicou uma matéria sobre o drama das chamadas “crianças deixadas para trás”, quase 70 milhões de crianças chinesas que sofrem as consequências da urbanização acelerada das últimas décadas.
Uma particularidade das migrações na China é o sistema de “hukou”, que atrela cada chinês ao local de residência original da família. Mesmo flexibilizado nos últimos anos, esse sistema ainda faz com que o migrante possa ficar sem acesso a serviços públicos como saúde e educação. Ou seja, quem migra e não consegue transferir seu local de residência para a nova cidade (transferência muito difícil quando é para as grandes cidades do país) pode ter que pagar caro para mandar o filho para a escola.
Assim, as crianças acabam ficando para trás com avós, parentes distantes e até mesmo sozinhas.
Nessa entrevista, Ron Pouwels, chefe do setor de proteção à criança do Unicef China, compara a situação da China à de outros países e oferece alguns caminhos para amenizar o problema.
Blog – São hoje quase 70 milhões de crianças “deixadas para trás”, como são conhecidas, 61 milhões delas no campo. Há alguma tendência de aumento ou diminuição desses números?
Pouwels – Eu tenho um problema em dar um rótulo para as crianças, como “crianças deixadas para trás”. Acho melhor falar em “crianças que foram deixadas para trás”, porque são crianças em primeiro lugar. E para evitar rótulos e a estigmatização que costuma vir com eles. Estamos falando de 61 milhões deixadas no campo, mas uma parte mora com o pai ou a mãe. Não é ideal, claro, mas não estão totalmente deixadas para trás [estima-se que cerca da metade dessas 61 milhões está sem pai e mãe].
Se estamos falando em tendência, em 2000 tínhamos cerca de 20 milhões de crianças deixadas no campo. Não houve censo em 2005, mas uma pesquisa identificou 58,6 milhões naquele ano. E, em 2010, 61 milhões. Você vê um crescimento acentuado entre 2000 e 2005 e depois algo como um nivelamento. Será interessante ver os dados de 2015, no próximo ano, para saber o que está acontecendo.
Se você fala rapidamente, 60 milhões não parece muito, mas é a população da Itália, pouco menos de um terço da população do Brasil. É enorme, 20% da população total de crianças da China.
Olhando os números de outros países que enfrentam problemas semelhantes, como a Romênia, nada chega perto da China. Como situar esse problema no cenário mundial?
Se você começa a falar em números, na China, tudo fica enorme. A diferença em relação à Europa é que lá é migração internacional, pessoas que mudam do leste para o oeste do continente. Vemos tendências semelhantes nas migrações a partir da África e Oriente Médio, mas geralmente são crianças que viajam com os pais. Por outro lado, há países como as Filipinas, em que mulheres, especialmente, emigram. A estimativa é que, nas Filipinas, cerca de 9 milhões de crianças foram deixadas para trás, cerca de 27% do total de crianças. Na Tailândia, há migração do Norte para o Centro e o Sul do país. Cerca de 3 milhões de crianças, 21% do total. E, na Tailândia, muitas crianças também são deixadas com os avós, cerca de 90% delas.
No mês passado, a China viveu uma tragédia com quatro irmãos que viviam sozinhos em Guizhou e morreram. Que riscos que essas crianças deixadas correm?
Não há muita pesquisa na China, então é difícil dizer com o que essas crianças estão confrontadas. Mas sabemos, a partir de evidências internacionais, que há desafios e riscos. O primeiro e mais importante é não estar com os pais, que deveriam estar lá para ajudar no desenvolvimento da criança, oferecendo um ambiente seguro, mostrando seu amor e cuidado. Isso está faltando nos primeiros anos do desenvolvimento. Sabemos, por alguma pesquisa que o Unicef fez na Tailândia, que crianças de zero a 3 anos que foram deixadas para trás têm atrasos nas habilidades sociais e de comunicação. Também há riscos de deixar a escola, sofrer abuso, bullying e risco mais acentuado de tráfico.
E um desafio para os pais é a comunicação com os filhos que ficaram. Sobre o que conversam? Só sobre as notas da escola ou demonstram amor e carinho? Como os pais podem ser preparados para saber que é bom ligar de tempos em tempos para o filho, que é importante fazer o esforço de voltar para casa pelo menos uma vez por ano.
Quais são os motivos para essa situação na China?
O que torna a China única é o sistema de “hukou”, com certeza. Se os pais se mudassem com as crianças, elas não teriam acesso aos serviços públicos oferecidos às outras crianças. Mas é mais complexo que isso. Também acontece que as cidades são caras de se viver. Trazer a criança com você não necessariamente leva a uma vida melhor. E é preciso ver onde os pais são empregados. Se é na construção civil, podem viver na obra.
O governo está reformando o sistema de “hukou” e tentando permitir o acesso à escola, mas em certos casos ainda é preciso pagar, e os pais não têm o dinheiro. Em algumas cidades, o governo deu apoio financeiro. Mas, em cidades grandes como Pequim, seria extremamente caro se permitissem que todas essas crianças entrassem nas escolas públicas, onde a melhor educação é oferecida.
E a solução, então, está nessas reformas?
É parte da solução. No longo prazo, é preciso continuar a reforma do “hukou” e o investimento nas cidades secundárias [que permitiriam que os pais morassem saíssem do campo para cidades maiores, mas fora dos grandes centros e mais perto de casa, com a companhia das crianças]. Mas pode levar anos para acontecer. No meio tempo, você precisa de soluções para as crianças que foram deixadas para trás.
Precisamos ver que tipo de suporte pode ser dado no nível da comunidade. A China tem um relativamente bom sistema de assistência social. O desafio é que, muitas vezes, os pais desconhecem ou as crianças não estão registradas e, assim, não têm acesso. E, muitas vezes, o problema não é a pobreza, como nesse caso específico de Guizhou. Lá, as crianças tinham comida e dinheiro, porque o pai mandava.
Mais importante, e de forma que alcance crianças com outras vulnerabilidades, é que tipo de mecanismo você pode construir, na comunidade, para que as famílias que precisam de ajuda sejam identificadas.
Há algo assim na China?
Há alguns mecanismos em desenvolvimento, o Unicef apoia os “assistentes sociais descalços”, baseados no conceito dos “médicos descalços” [pessoas treinadas rapidamente, durante uma fase do governo de Mao Zedong, para oferecer tratamento básico de saúde]. Identificar uma pessoa na comunidade que possa fazer atividades de serviço social, como ver quem precisa de apoio financeiro, social e psicológico. Também apoiamos espaços amigos da criança, lugares na comunidade com profissionais que podem oferecer apoio e procurar por crianças que sofrem abuso ou negligência e crianças com deficiência que precisam de apoio.
Simultaneamente, a China está trabalhando num sistema de proteção à criança. Está progredindo, mas ainda em escala pequena. Esses serviços precisam estar lá, porque a comunidade é boa, mas há casos com os quais ela não pode lidar, porque não tem conhecimento ou autoridade.